Artigo: “Um paladino da ciência do justo”, por desembargador Edvaldo Moura

Publicado por: Valéria Carvalho

 
 

                                                                                                                                            EDVALDO PEREIRA DE MOURA

Desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí,

Diretor da ESMEPI e

Professor da UESPI

O insigne criminalista brasileiro, Evandro Lins e Silva, em magistral escólio sobre a obra de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria – Dos Delitos e das Penas – lembra-nos que a prisão, como método penal, é relativamente recente. Antes, a Justiça Criminal era terrivelmente cruel e impiedosa. Os criminosos aguardavam a aplicação e cumprimento da pena, nos ergástulos, nas enxovias, nas masmorras, nos vestíbulos dos pelourinhos, nos depósitos das câmaras de suplícios, bastidores do cenário final, onde morriam atenazados, fustigados, esquartejados, enforcados e queimados no meio de um espetáculo marcado por uma  liturgia de ritual macabro e repulsivo.

Ensina-nos, ainda, o sábio jurista conterrâneo, que o primeiro protesto contra a pena de morte e a ignomínia das prisões de antanho, se inspirou no humanitarismo dos enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau e Montesquieu. Protomártir desse grande passo da humanidade, que chamou a si o ódio da caterva de prepostos “divinos”, conclamando o homem a conhecer a justiça, precedendo a antropologia criminal, que pedia a justiça que conhecesse o homem, o marquês de Beccaria, 25 anos depois, inspiraria a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, particularmente, os seus artigos sétimo e oitavo.

É dramática e magnânima a justificativa de Cesare Bonesana, a que o mestre Evandro Lins e Silva chamou de “final patético de sua introdução”:

“Mas, se ao sustentar os direitos do gênero humano e a verdade invencivel, para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância, igualmente funesta, as bênçãos e as lágrimas de um único inocente, reconduzido aos sentimentos de alegria e de felicidade, consolar-me-iam do desprezo do resto dos homens”.

Felizmente, as pérfidas acusações de impiedade e sedição assacadas contra Beccaria por Vicenzo Facchinei de Corfu, monge dominicano do Convento de Vallombreuse, não conseguiram obscurecer o fanal da justiça acesa por ele, cujo halo generoso tem fustigado as sombras da injustiça nos porões dos cárceres nestes três últimos séculos.

Vivemos, hoje, um renascimento dos ideais beccarianos, testemunhando, com felicidade, os esforços dos novos operadores do Direito, que em sua maioria, tendem à auscultação do fato social como medida indispensável à humanização da Justiça. Eles se espalham por todos os lugares, onde as intransigências dogmáticas Kelsenianas, que mitificam a norma fria, mais voltada aos interesses do Estado-Juiz e menos empática às susceptibilidades e aos anseios dos cidadãos, sem vez e sem voz, perdidos na tormenta descomunal das massas anônimas e conflitivas.

Entre nós, não são poucas as manifestações desse messianismo alentador, vindas de arejadas proeminências do Direito e da Justiça, das mais diferentes áreas. Exemplo disso, é a obra denominada “A Ciência do Justo”, da inspirada lavra do Desembargador Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho que já dirigiu, com competência e zelo inexcedível os destinos do Poder Judiciário do Piauí.

A obra do Desembargador Brandão de Carvalho traz no titulo parte da definição de jurisprudência de Ulpiano, para quem a jurisprudência abrange, também, a ciência do injusto, o conhecimento das coisas divinas e, igualmente, das coisas humanas.

O professor Marcos Vinicius Furtado Coelho, prefaciador da obra, com admirável poder de síntese e de análise, deixa explícito que o objeto do Desembargador Brandão de Carvalho é a valorização do ser humano, como alvo teleológico da Justiça, respeitando o ordenamento positivado, uma vez que, consoante o sempre festejado magistério do ínclito mestre Wilson Brandão, “o juiz, que é chamado a aplicar as normas frias, rígidas, hieráticas, está em presença de homens”.

De acordo com o Desembargador Brandão de Carvalho, a responsabilidade para com o humano é uma tônica essencial, pois, para ele, a ciência do justo, na intencionalidade de sua obra, “objetiva, acima de tudo, ser uma pequena, porém insistente centelha, fagulha de verdadeira justiça”. Justiça bela, de que falava Celso; justiça proporcional igualitarista, proclamada por Reale; justiça ideal, defendida por Platão; justiça distributiva e comutativa, a que se referia Aristóteles, enfim, justiça destinada a ser o espelho do divino, como pregou Jesus Cristo, Senhor de todos e Juiz Único do mundo.

A Ciência do Justo do Desembargador Brandão de Carvalho é, antes de tudo, uma tese de erudição e de decência. De erudição, porque, além dos judiciosos acórdãos primorosamente elaborados, vamos encontrar ali, uma seleção de textos técnicos com uma generosa gama de conhecimentos multidisciplinares e indispensáveis aos julgadores da contemporaneidade. De decência, porque em cada esforço de suas elucidações, o Desembargador Brandão de Carvalho, em seus prélios diários, tem sido fiel ao postulado de escoimada pureza de seu saudoso tio e esteio de todos nós, o jurista Wilson Brandão, para quem “a regra moral quer tornar-se regra jurídica. E esse esforço, que tem seus óbices e seus êxitos, é a escalada constante do espírito humano para um ideal seguro”.

É, portanto, motivo de justificável júbilo, vermos brotar do espírito e da ação desse notável magistrado, que em momento singular e cruciante da vida brasileira, tem a árdua missão de realizar o justo, agora como decano do Tribunal de Jutiça do meu Estado, nas aspirações mais elevadas do Direito, assegurando-nos que o Piauí, já se ombreia com os que proclamam as mais arrojadas ideias de vanguardas da Justiça, sem descurar da postura valorativa consagrada pela tradição dos julgados dos nossos grandes mestres do passado.

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