“Estado Democrático em Perigo” – Des. Valério Chaves

Publicado por: admin

 
 

Depois das recentes “guerras” entre facções rivais criminosas dentro de alguns presídios brasileiros e que resultaram em matanças violentas de inúmeros presos decapitados com extrema crueldade, poucas vezes vista em nosso país, agitaram-se os debates nos meios políticos e jurídicos pertinentes à aplicação da pena como meio de ressocialização do delinquente e a terceirização dos presídios como meio de melhorar a administração do sistema prisional existente, inclusive com o regime fechado apenas para presos de alta periculosidade e ampliação das medidas alternativas à humanização do cumprimento de pena.

Apesar de está em voga as discussões sobre o tema, não se desconhece, todavia, que um dos grandes desafios do momento que se apresentam para os governantes do Brasil, é o agravamento da crise do sistema penitenciário, principalmente depois dos episódios ocorridos em Manaus, Roraima e Natal e o nível da reincidência (estimada em 86%) em posição oposta com a incompetência e o direito dever do Estado brasileiro de restabelecer a ordem social através da construção de novos presídios como alternativas contemporâneas para diminuir a superlotação e oferecer melhor qualidade de prestação do serviço público carcerário.

Os episódios recentes de barbárie extrema com a degola de presos, fazem aumentar ainda mais a indignação pública e reforçam sinais alarmantes de que o denominado Estado Constitucional e Democrático de Direito se encontra num perigoso processo de ruptura social, agravado com a nítida indiferença governamental, dando-nos a sensação de desesperança em tudo o que nos rodeia e assusta.

A par desse quadro de descrédito, pois os cidadãos brasileiros já não acreditam no atual sistema de execução das penas e nas estruturas formais de controle da criminalidade, acresça-se os métodos de gestão dos presídios, aliados a uma somatória de ocorrências pelo país afora, respaldadas em críticas sistemáticas sobre a impunidade, lentidão e ineficiência da Justiça, encolhimento do número de juízes, e pessoas se colocando no papel do Estado e  da Lei – tudo sempre a desaguar no Poder Judiciário.

Inegavelmente, a problemática que aflige o sistema penitenciário brasileiro não cabe exclusivamente à alegada lentidão da Justiça que, presa a uma legislação obsoleta, nada pode fazer diante de uma Lei de Execução Penal que, apesar de elogiada em todo o mundo, está completamente divorciada da realidade prisional, porquanto seus critérios de aplicação se subordinam a conveniências políticas da administração pública.

Bem perto de nós, temos o triste exemplo da Casa de Custódia de Teresina, vivendo em estado de quase calamidade pública, com lotação quatro vezes superior à sua capacidade (336) e desprovida de recursos financeiros e humanos.

Ressalte-se que esta situação não resta isolada. Representa apenas uma pequena amostra do quadro aflitivo que atinge os demais presídios do Estado do Piauí onde por falta de equipamentos adequados à segurança dos presos e dos agentes carcerários, é possível o ingresso de pessoas com drogas, telefones celulares e armas, frustrando assim diuturnamente os fins ressocializadores que o sistema poderia oferecer.

Vale dizer, por fim, que esse quadro de calamidade dos presídios brasileiros, não pode ficar apenas no despertar da imprensa, dos juízes criminais, promotores, advogados e delegados de polícia. É necessário o engajamento de todos os atores sociais, pois, afinal, o que esperar de um sistema vigente que dentro de um universo de 711.463 presos em todo o Brasil que, sem considerar o número de 147 mil  pessoas em prisão domiciliar, o déficit atual de vagas passa para 354 mil além da capacidade permitida. Desse total de presos, 222 mil são provisórios, sem julgamento. É o que revela levantamento feito no final de 2016 pelo Conselho Nacional de Justiça nos 27 Estados brasileiros.

Com essas novas estatísticas o Brasil passa a ter a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.

A participação da sociedade, conquanto importante e necessária, não representa por si só a solução para acabar com as chacinas entre presos de facções criminosas de siglas diferentes. Entendo que o primeiro passo há ser dado com o combate à corrupção, com a identificação dos líderes dessas facções, com novos métodos de gestão e outras medidas que possam permitir a aplicação da lei de execução, sem egoismo e com respeito à cidadania.

Não é necessário dizer que a questão enseja reflexão e bom senso não somente por parte do governo, mas de toda a sociedade civil organizada, cuja postura sempre foi a favor da punição branda para a criminalidade comum, desde que certa, imediata e até irrecorrível.

Como já reiteradamente demonstrado, enquanto as leis forem feitas através de reformas pontuais, sem a devida discussão da sociedade; enquanto não houver maior punição para criminosos violentos e perigosos; enquanto o governo permanecer nesse determinismo histórico de promover políticas públicas equivocadas; enquanto não houver uma reforma penal capaz de impedir a aplicação de benefícios legais que hoje permitem o pronto retorno do condenado à liberdade, nosso país não se livrará da criminalidade que amedronta o povo, estimula a reincidência e desacredita a Justiça.
 
Valério Chaves Pinto – Desembargador inativo do TJPI

—–
Fonte: O Autor.

Compartilhe:
Print Friendly, PDF & Email